domingo, 29 de julho de 2007

LÁZULI

Posto que é noite,
em tua pele
uma fímbria de mar
permanece.

Com a boca recolho
ondas algas espumas.

E feliz
enuncio
que és azul
e serás azul
para todo o sempre.

Um azul
que nem conheces.


Neide Archanjo,
Chanson d’amour, Epifanias

MARINHAS
Sempre foste ilha, em algum lugar.

1

Busco a praia
onde te vi caminhar.
Minha lembrança de ti
corre junto às águas que batem
contra a costa.

Ando sem outro horizonte
senão tua miragem.

Busco o olhar
que me fez procurar-te
por todas as ilhas.

Rochas, limo, fontes limpas
a inundar tua paisagem.

Inesperada praia
inesperadas rochas
íngremes sobre o mar.

Todo mar te pertence.

Ancoro em teu corpo insular
e indiviso.

Recolho da areia
tuas conchas vazias
e teu semblante ressurge
na espuma que toca meus pés.
Te devolvo às águas.

As ondas quebram sobre a areia
e nossos pés sentem o frescor
de qualquer dia próximo,
mas desconhecido.

O tempo nos cerca
como o mar envolve as ilhas.
Estamos tão perto e tão distantes.
Tudo está por acontecer.

O futuro testemunhará por nós.

Jamais abandonarás tua solidão de ilha.
As águas te sussurram segredos
que ficarão nas conchas esquecidas
sobre a praia.

Navego e ancoro em teu dorso,
mesmo que não esperes por mim,
mesmo que nada tenha de acontecer.

São Paulo, 28/05/1998

Todo homem é uma ilha.

Circundo tuas praias
e te vejo ao largo,
ansioso, temido, desejado.

O mar tem saudades
de tuas mãos sobre meu colo,
de auroras esquecidas.

Somos novos a cada dia,
a resgatar o breu das horas,
faces cinzeladas que esculpimos,
o interior das vagas
a nos redescobrir inteiros.

Ipanema, 2/11/1999

As horas ficaram escritas sobre as águas.

Navego por ti novamente,
meu corpo a deslizar sobre o teu
em ondas íntimas e imensas.

Copacabana, 9/04/1999

2

Toda vez que olho,
vejo outra face que me vê.

Turva neblina, vão,
fonte num braço de mar,
luz habitando cavernas,
fogo crepitando no escuro.

Todo oceano contorna tuas ilhas
lavadas aos pés das manhãs altíssimas,
nevoeiro em breu, maresia,
vagas ensimesmadas e tristes,
levando a areia que envolve tuas praias.

Todo olhar que me vê,
olha novamente para mim
e eu me faço transparente
além de toda paisagem.

Todo tempo é benigno
ao nos devolver tudo que perdemos.

São Paulo, 17/11/1998

CALCÁRIAS
Teu mito é outro artifício.

3

Meu canto se alastra.
Busco a fonte, a amurada,
luas em semicírculos,
órbitas concêntricas,
olhares difusos,
bocas que se abrem
e esperam a voz retomar
a origem das palavras,
a salinidade das manchas,
vidas submersas,
familiaridade daquilo que não é conhecido,
devolvendo-nos a memória
– inexplorados subterfúgios –
a andar nas pontas dos pés,
diante de janelas escancaradas,
o chão de pedra coberto de cinzas.
As paredes ainda deslizam o meu olhar
sobre o nada.

São Paulo, 24/10/1998

4

Inúmeras vezes observamos a morte.
Vemos os que morrem diante de nós
como se nos preparássemos lentamente
para o mesmo momento.

Assistimos repetidas vezes a morte alheia
com um estranhamento de bicho.
O que sente quem morre?
E nos sentamos à cabeceira,
esperando a hora final.

Que estranho prazer nos dá
ver isso e perguntamos:
“Acabou?”
Enterramos nossos mortos
como se ensaiássemos
repetidas vezes nosso próprio sepultamento
para que quando fizerem isso por nós,
saibamos o que vai acontecer.

Para isso servem os rituais.
Para sabermos o que farão
conosco quando formos.
Idealizamos não nossa morte,
mas nosso enterro.
Haverá flores?
Quem virá me ver?
Que roupas usarão,
o que dirão à beira da sepultura?
Cochicharão uns, rirão e chorarão outros,
e nossa ausência não importará mais,
porque já estaremos definitivamente ausentes.

Nesse momento, sem saber porque,
seremos eternos na lembrança dos que ficam
e por toda eternidade adiante de nós.
De nada terá valido o que fizemos até ali,
porque tudo terminará igual.
E nossos atos,
nossas palavras e nossos gestos
serão os únicos que levaremos
na lembrança porque somente
haveremos de nos lembrar quem fomos,
não o que tivemos.

Assistimos à morte alheia
como quem assiste à própria morte,
para ensaiarmos infinitas vezes
o que farão à nossa volta,
já que não poderemos fazer mais nada,
apenas pairar na perpétua
ausência de tudo e de todos.

São Paulo, 15/01/1999

5

Entre nós, há somente espaço para este caminho
que se estreita e se estende sem cessar.
O fim guarda outro início que se lança
perpendicularmente ao instante,
mantendo-nos intactos até o momento seguinte.

Enquanto espero, sei que cada instante
se desdobra em outros
e todas as esperas
estão contidas nesta espera,
sorvendo a sucessão de momentos,
como água que escorre sem retorno.

Estamos destinados à proximidade imprevista,
como se ao tocarmos este momento,
descobríssemos que nada mais teríamos feito
senão ter ido um de encontro ao outro.

São Paulo, 17/12/1998

6

Eu me movo
sobre teu largo ventre
e mergulho no espesso tecido
de tua carne,
tocando tuas formas
e teu âmago,
buscando o charco
onde te espraias
e te comoves:
és feito do mesmo barro
com que moldas
teu destino.

Ipanema, 31/03/1999

EÓLICAS
Estás ausente,
como se sobre ti soprasse o tal vento.

7

E tive medo
de me perder e de vagar
sem rumo,
sem outra rota
senão a de voltar a ver-te,
os meus olhos densos
detendo-se sobre ti e teu gesto ausente.

Tive medo de te perder muito cedo,
antes que tivesse tempo de descobrir teu nome,
porque a ausência range seus segredos
e eu nada sei a não ser eu mesma,
que te esperou por entre ramos e dobras
a recobrir a relva com teus rastros.
Não te vi, mas te sentia perto.

Ipanema, 5/04/1999

8

Eu não sabia ser tão raro
estar sem pressentimentos
quando a vida escorre escondida
em águas mínimas e divisórias.

Eu não sabia estar oca
de um vazio insofismável e espúrio
a tanger nódoas de candelabros gastos
com velas iluminando o nada.
Eu não sabia estar tão longe,
esquecida de quem era
ou do que queria.

Preenchi esse vazio com lembranças
daquilo que fui antes de ser
e, sem saber e estando muda,
dedilhei as horas como cordas de harpa
esticadas sobre o vão dos dias.

Ipanema, 9/04/1999

9

O amor é feito de caminhos,
meandros,
sendas devastadas,
abertas por dentro, como se fossem aradas.

Somos fáceis, torvelinhos e vento.
Tão inúteis quanto fúteis,
somos nada.

Minha carta não assinada
e o sinal dos tempos
varado sobre o infinito.

Ipanema, 9/04/1999

10

Te ouvi, palavra,
sôfrega sobre meu alimento.

Te transformo, aguda,
no revés do sonho
de outra tessitura.

Te empunho, lume,
fonte feita de asa
e féria,
a casca a romper o fruto
(carne sob o invólucro da perda).

Nada dito ou feito,
vaguei sob sombras,
oculta.

Ipanema, 9/04/1999

TEMPORAIS
O sol doira sem literatura.
Fernando Pessoa

11

Silenciosos anjos sem asas
sorriem das perdas humanas
– inócuas forças passando
num irrequieto murmúrio de folhas.

Os anjos não riem nem falam:
pousam desajeitados e breves
em altas colunas
de onde o mundo parece pequeno.

Vivem a pairar serenos
e a esperar, morremos lentamente,
as faces cobertas de musgo.

Essa pouca haste,
esse lance de pedra no abismo
– ouço o eco dos sinos
repicando nos descampados.

Os homens não passam nem ficam,
febrilmente reluzem,
seus corpos partidos
como ânforas esquecidas sobre o monte.

Não, não sabemos de nós,
apenas vagamos semivivos,
olhos semi-abertos
e estanques,
mesmo que sobre a pele
o sol não descanse.
Falemos de brisa e relento,
fomes passadas e distantes
e outra verdade nos cubra inteiros
e nos esquecêssemos de tudo.

Copacabana, 12/04/1999

12
INVENTÁRIO
para Maria Luíza Mendes Furia

Em teu inventário,
a solidão é desassossego,
crepitando no escuro as achas do medo.

Em teu poema, o passado se alonga
e se instala entre as fendas,
as dobras dos momentos irresignados.

Reinauguras em cada verso
a outra medida do tempo:
estar só para saber-se vário.
O passado é um presente que perdura
e procura reinscrever-se de onde foi abolido.

Tuas mãos esculpem em silêncio
e no silêncio erguem torres da espera.

Longíssimos horizontes
se abrem diante de teus olhos.
E para ti, toda vastidão é permitida.

Estejamos sós – mas nunca mudos.

São Paulo, 24/01/1999

METÁLICAS
Eu invento a mim mesma.

13

Esqueci de quem fui
e comecei a escolher de novo
minha imagem refletida.

Despi todas as máscaras
e, neste momento, não sou mais eu
– visto outra que me cabe melhor,
porque posso sorrir
dentro dela,
posso estranhar-me
dentro dela,
posso reinventar-me
dentro dela,
e, ao mesmo tempo,
não ser nada disso,
não precisar ser
nenhuma delas.

A melhor descoberta
é que não sou
– posso ser o que quiser.
A necessidade de máscaras
não é minha.
Visto qualquer uma
e descarto-a.
Visto-a novamente
e não é nada.
Nenhuma culpa em não ser.
Que liberdade
não ter de ser nada!
Não tenho rosto
e posso ter todos.
O rosto de quem me olha é meu.
Eu sou quem me vê
e me vejo nele, seja quem for,
não importa.
Se não tivesse espelho,
teria rosto?
Se não tivesse um reflexo,
seria eu?
Teria sombra,
teria forma,
mas não um rosto.
Uso qualquer máscara
e sou todas.
Não sou nenhuma
e sou eu.

Copacabana, 16/04/1999

14

Todo silêncio esconde o rosto
de si mesmo.

Te vejo sem rosto,
porque és o silêncio.

Te abençôo
por seres rosto e silêncio
amalgamados.

Sê quem és:
em ti está a vida.

Copacabana, 19/04/1999

15

Abandona tua forma breve.

Te fustigo até que se rompa
o lacre com que selas tua alma.

Te observo, canina,
as patas sobre teu peito de mármore.

És dócil e te dobras sobre mim.

Te olho como se não existisses ainda.
Serás um dia completo.

Teus passos te levarão em círculos à origem.

Começo em ti um novo canto.
Minha voz te toca com mãos de cítara.
És o ocaso.

Do fruto roubado do jardim,
fazes ao longe tua semeadura.
Em minhas mãos, restaram tuas sementes.

Estamos plantados num canteiro exangue.
Brotamos do mesmo silêncio,
efêmeros e cálidos,
os rostos admirados e novos
– somos inauditos
e feitos sem presságios.

Nada nos devolve
a nós mesmos.

Copacabana, 22/04/1999

16

Escuta:
não me vês plantada.
Teu inútil ser
e tua inútil anatomia.
Me visitaste,
anêmona ceifada,
os punhos cerrados
sobre o catre de pedra.
Sou frágil,
têmpera e fauna,
o rubor das faces
a tomar-me a alma.

Ipanema, 23/04/1999

17

Terei todo cuidado ao falar,
pois ao dizer qualquer palavra,
outro silêncio se instala.
Alongo-me por um caminho aberto
por nossas mãos e pés alados.
Sento-me ao teu lado e te toco:
a tarde se dissolve
na noite de outros olhos.

Ipanema, 7/05/1999

18

Antecipo-te,
paisagem primitiva,
olho de tigre,
calêndula,
foice cortando a relva.

És cúmplice
de todos os meus gestos,
mesmo este que não vês.

Ipanema, 9/06/1999

19

Queima-me a vida
e o frescor de brisas não atinge
o rio em chamas
que segue por mim.
Corro à margem,
sustentando nas mãos
o doce peso
de minha antigüidade.
Envelheci sem olhar meu rosto
– sequer posso me lembrar de mim.

Copacabana, 21/07/1999

20

Teu nome tem farpas que colam em meu corpo
e ferem como espinhos.

Teu nome tem algo de belo, estranho e fugidio.

Teu nome é concha semi-aberta,
por onde escorrem vestígios de outra aurora.

São Paulo, 15/07/1998

21

O que acredito é maior que a dor de perder,
por isso afago em ti o que me é mais caro:
a parte de mim que aceitas,
porque é tua também.

Jardim Botânico, 21/12/1999

22

Descrevi uma paisagem
que pulsava quase aflita,
montes e horizontes,
a abóbada do céu em concha.
Esta paisagem se oculta
ao ouvir o silêncio que sobre ela se instala.
Deixo passar os homens,
as cores, as sombras, todos os nomes,
o que aprendi a desenhar por dentro.
Guardo as horas em que o sonho
não tece mais o pensamento
– somente o dilui em outro instante.
Terei comigo tudo que vi
e o que amei secretamente
– apenas eu sei.

Rio de Janeiro, 22/12/1999

FOSFÓRICAS

Poder simplesmente esquecer-te
no instante em que partíssemos
e amar-te com extrema ternura
assim que nos reencontrássemos.
Fazer do amor aventura
como se nunca de amar nos deixássemos.
Pedro Lage

23

De qualquer forma,
havia ali um amanhecer, decerto.[1]
Experimentei as vozes
como veios de luz sobre a laje escura.
Os ecos repicaram na caverna
e o início dos tempos
se incrustou na pedra angular
de meu próprio sonho.

[1] Os primeiros versos dos poemas são de Pedro Lage, in Entrevista com o Chipanzé, 1996.

24

A vida é mais rica e mais vasta.
Ouso andar,
seguindo os mesmos caminhos,
refazendo os mesmos percursos,
só para fazê-los novamente.

25

Deixa-me sonhando com o que já não há.
Deixa-me ficar aqui
como se deixasses tudo para trás
só para vir me ver.
Deixa-me ser o que já não sou,
pois o tempo limita nossas esperas.


26

Livre do desejo, serei sempre o mesmo?
Oculto minha face como se não quisesse ser visto.
Perder todos os desejos para viver outros.
Colocar a vida entre paredes,
onde tudo acontece,
sem que precisemos fazer nada.

27

Louco, este desejo nunca morrerá
e ficarei, alicerce de mim mesmo,
uma tocha no escuro,
inextinguível,
varando a noite e suas cicatrizes.
Nenhum desejo morre.
Permanece vivo.
E a vertigem do desejo
não nos deixará.


28

Assim corre o tempo para mim,
cristal fugidio
a descer pelo estreito gargalo
de teus membros.
Me detenho sobre teu olhar
e me deixo levar por tua vaga,
onda que me conhece e me retém,
cativa.

29

Já não posso esperar, não agora:
perdi-me em tua busca
e revirei os sonhos nas mãos,
como pedras retiradas de um rio.
Já não posso dizer, não agora.
Tive tudo que quis
e, ao mesmo tempo, nada queria.
Servi-me dos meus desejos
para saciar minha fome,
mas os abandonei
antes que pudesse sabê-los.

30

Quando nos deixarem livres para amar,
falaremos horas a fio,
teceremos intermináveis momentos
e saberemos que toda discórdia terá seu pomo
no mesmo jardim que plantamos.
Seremos livres e não nos importará outro tempo,
já que esperamos tanto por este.
Quando formos livres,
saberemos quem somos,
pois seremos novos e ainda os mesmos.

31

Sobre o sopro selvagem das ondas,
cavalgo noite e dia,
incansável amazona de teus prazeres banais.
Somos ilhas, continentes,
fontes sedentas aflorando em riachos.
Banho-me em tuas águas,
ó oceano vazio,
a buscar onde terminas.

Copacabana, 19/09/1999

METEÓRICAS

32
HOTEL DE PARIS

No hotel de Paris
passei a tarde
varanda de gerânios
olhando a rua
perto da Madelaine
Boulevard des Cappucines.
Caminho até o Opéra
para um café.
Place Vendôme
a estátua de Napoleão
todas as armas e canhões fundidos.
Sustém a mão sobre o peito
vaga dança de nuvens
olhos lentos sobre o horizonte
nascem belos pelos tetos
a dor de ausência do que nunca está.
Não sei se escrevo
ou se me escrevem as horas que respiro.

Gávea, 6/09/2003 – 16h16

33
MUITO

Vive o muito
onde nada há.

Lago côncavo
transbordado

vivos peixes de guelras fixas
estática luz sob o céu imóvel.

Anda e vive
sem ti mesmo –

a palavra muda
e não escrita.

Verte o nada onde nada há.

Gávea, 13/09/2003 – 17h55

34
A BELEZA DE TEU GESTO

Nenhuma beleza repetirá teu gesto,
cálida fronte entre dentes.
Antes de me veres,
ouve os versos de meu silêncio.

Nenhum gesto conterá teu sonho.
Voz esquecida dentro da concha.
Ave mão palavra olvidada.
Onde me buscas, estou inteira.

Botafogo, 16/09/2003 – 1h30


35
TANGER A HORA NUA
para Pedro Almeida

Tangemos horas nuas
fontes repastos rebentos

Vivemos por sermos fartos
vastos largos imensos

Tecemos por dentro a hora
antes de termos medo

Fomos tão pequenos –
primeiros entre os primeiros

Despimos assim os mitos
vértebras lápides heras

E entre palavras vivemos:
estes ermos longos e densos

Botafogo, 10/10/2003 – 23h42


36
AMAR-TE MAIS
Por que não amar-te mais
se não me amas menos
?

És esse principio de coisas,
circunspeta palavra,
sôfrego início de tua fala,
teu silêncio vivo
enternecido,
vivendo à véspera do nada,
voltando ao abismo
de tua cólera,
lassidão triste
de uma melancolia antiga.
És, porque foste sempre
a tempestade.
Mesmo que me baste de ti,
viverei à míngua do que és.
Cais do Porto, 19/10/2003 – 12h30

37
AS HORAS

Serão todas as horas,
mantos, charcos, regaços,
despindo vinhas e tons,
fonte de teu braço alto.

Ergue-me a vista os olhos,
lânguidas dores de espera,
vozes que enchem minha alma,
tão grandes são os segredos.

Naus que aportam e partem,
visitam tolas aragens,
enfunam os céus à passagem
de antigos dias vividos.

Lapa, 1/11/2003 – 20h05

38
PEDIR
Para Jason Carneiro

Pedir antes um gesto
aceno mínimo de olhos
que pousam sobre o fardo
que carregas.

Gestar como fazem as abelhas
o mel, o favo, a colméia
a casa toda um pote de doçuras
como se de ti jorrassem rios.

Mover os lábios em prece, pois
a cada dia nascem poemas
mesmo nunca escritos.

O amor é o último a se revelar.

Santa Teresa, 20/11/2003 – 00h18


39
A MIM, O IMPOSSÍVEL
Para Marco Lucchesi

A mim, o impossível.
Mesmo que vague,
jamais terei pouso.
Mesmo que me vista
de nuvens,
nenhum céu me acolherá
em seu vôo de pássaro.
Vivo a inesquecível viagem,
o sonho jamais tido,
a hora, o dia, o vago.
A mim, tudo é farto.
Imensas mãos me colhem
e deixam-me ao largo.
Cães ladram à noite.
E seu cessar de murmúrios
transforma o abismo
em nada.

Santa Teresa, 9/12/2003 – 11h07

40
JAMAIS HAVERÁ UM DIA

Jamais haverá um dia como depois.
Depois de conhecer-te,
depois de esperar-te, depois.
Nada mais importará como antes.
Depois de ver-te, terei mudado.
Minhas mãos terão um novo tato
e a boca, outro gosto.
Jamais terei a vida como a tenho.
Terei um novo júbilo
e, depois de ter-te,
serei outra.

Santa Teresa, 27/12/2003 – 22h16

41
TODOS OS TOQUES
Para Paulo Azeredo

A última treva
escureceu-te os olhos
despidos de cenas
translúcidas,
moveu-te por dentro
a terra úmida, seara
vida a fogo
a toda prova.
Aqueceu-te a chama
a hora, o verso
polido, a pedra.
Visgo úmido, temido,
sopro no rosto,
sorriso.

Santa Teresa, 13/01/2004 – 1h40

42
ESTAR SÓ
Para Tavinho Teixeira

Estarei só.
De tua ausência,
somente o segredo de não me veres
te liberta de minha dor.
Nada direi.
Fel é dúvida de ti e de mim.

Santa Teresa, 13/02/2004 – 11h23

43
A OBSCENA SENHORA H.
Para Hilda Hilst

Erguemos o silêncio à tua palavra.
Mas ainda escrevemos.
Até o dia que também nos calemos.
Tua grande face paira sobre nós.
Teu manto célere
tua carne escura de homens
tua voz antiga e repetida.
A morte te acolhe, mínima.
E a lembrança do que foste
perdura além de tu mesma,
cheia de sol e chaga.

São Paulo, 15/02/2004 – 1h07

44
SE AMO

Se amo,
eu não minto.
Lava-me por inteiro
a fartura de meu amor ritmado.
Eis-me próxima de teu corpo,
calêndula curando a pele,
visgo de flores,
mandrágoras,
o relevo de tuas mãos
sobre as ancas.
Posso partir-me ao meio
indecisa,
vida, a glosa de tua fala.
Eis-me,
porque me tens.

Santa Teresa, 5/03/2004 – 00h02